The Theorization of Organized Criminality: Contributions to a Scientific Discussion
La Teorización de la Criminalidad Organizada: Contribuciones a una Discussión Científica
Submetido em: 25-11-2021.
Aceito em: 24-01-2022.
Eliomar da Silva Pereira
Polícia Federal, Brasília/DF, Brasil
[email protected] http://lattes.cnpq.br/9833903206987713
A teorização da criminalidade organizada tem se desenvolvido segundo várias perspec- tivas – jurídica, sociológica, política e econômica–, mas subjacente a todas elas existe um problema comum que concerne à construção do conceito de seu objeto. O objetivo desse artigo é discutir algumas categorias teóricas que podem contribuir para uma me- lhor compreensão do conceito de crime organizado geralmente suposto nas diversas pesquisas. A nossa proposta recorre a algumas noções fundamentais que encontramos na discussão teórica da ciência em geral – como paradigma, programas metodológicos e tradições de pesquisa –, com as quais esperamos contribuir para uma melhor discussão científica sobre o tema. Ao final, com base nessas noções, esperamos deixar claro que a compreensão da criminalidade organizada, considerada aqui como um conceito geren- cial do problema da criminalidade contemporânea, pressupõe entender o paradigma sistêmico subjacente a sua teorização, por qualquer caminho que se siga.
Palavras-chave: conceito; teoria; tradição; programa; paradigma.
1 Este artigo foi produzido no âmbito do projeto de pesquisa Corpus Delicti – Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional, bem como do Observatório de Criminalidade Organizada, decorrendo diretamente da nossa atuação como moderador da Mesa de Debate – A teorização da Criminalidade Organizado, no Seminário Internacional de Ciências Policiais e Criminalidade Organizada, que decorreu em junho de 2021, organizado pela Academia Nacional de Policia em conjunto com Universidade Autónoma de Lisboa.
Revista Brasileira de Ciências Policiais
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Brasília, v. 13, n. 8, p. 359-381, Mar./2022
ISSN 2178-0013
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ISSN Eletrônico 2318-6917
The theorization of organized criminality has been developed according to various per- spectives – legal, sociological, political and economic – but underlying all of them there is a common problem concerning the construction of the concept of its object. The purpose of this article is to discuss some theoretical categories that can contribute to a better understanding of the concept of organized crime generally assumed in different studies. Our proposal uses some fundamental notions that we find in the theoretical dis- cussion of science in general – such as paradigm, methodological programs and research traditions – with which we hope to contribute to a better scientific discussion on the subject. In the end, based on these notions, we hope to make it clear that the understand- ing of organized criminality, considered here as a managerial concept of the problem of contemporary crime, presupposes understanding the systemic paradigm underlying its theorization, in whatever path it follows.
KEyWORds: concept; theory; tradition; program; paradigm.
La teorización de la criminalidad organizada se ha desarrollado bajo diversas perspec- tivas - legal, sociológica, política y económica - pero subyacente a todas ellas existe un problema común en cuanto a la construcción del concepto de su objeto. El propósito de este artículo es discutir algunas categorías teóricas que pueden contribuir a una mejor comprensión del concepto de crimen organizado generalmente asumido en diferentes estudios. Nuestra propuesta utiliza algunas nociones fundamentales que encontramos en la discusión teórica de la ciencia en general - como paradigma, programas metodo- lógicos y tradiciones de investigación- con las que esperamos contribuir a una mejor discusión científica sobre el tema. Al final, partiendo de estas nociones, esperamos de- jar claro que la comprensión del criminalidad organizada, considerado aquí como un concepto gerencial del problema del crimen contemporáneo, presupone comprender el paradigma sistémico que subyace a su teorización, sea cual sea su camino.
Palabras clave: concepto; teoría; tradicion; programa; paradigma.
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A tipologia das organizações criminosas que emerge na legis- lação do século XXI dará ao jurista positivista a impressão imediata de mais um tipo penal entre outros, que se constitui pelos elementos clás- sicos da teoria do crime e se pode interpretar segundo as mesmas con- cepções hermenêuticas da tradição jurídico-científica liberal. E muitos
ainda persistem nessa luta, alguns inconscientemente, sem perceberem que se trata do último obstáculo de resistência a um novo sistema penal que começa a desenhar-se pela arquitetura do pensamento punitivo e colocar-se em construção pela engenharia do poder punitivo. Mas ao jurista que se orienta por uma concepção crítica do direito penal não passará despercebido que algo mais se impõe à compreensão conceitual desse tipo. É que o direito penal, por suas técnicas tipológicas (tanto criminais quanto processuais), evoca muitas teorias e instrumentaliza discursos vários que se vão encarnar nas práticas das instituições, tra- duzindo expectativas sociais que correspondem a alguma racionalida- de punitiva. É isso, essencialmente, que buscaremos tornar evidente ao longo do artigo, recorrendo a algumas noções fundamentais da teoria da ciência, como programa metodológico e tradição de pesquisa, dan- do ênfase à noção de paradigma.
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É preciso ter em conta, primeiramente, que no conceito de orga- nização criminosa podemos distinguir pelo menos três fenômenos cujas bases fundamentais sempre se tentaram separar, mas que cada vez mais insistem em mostrar suas relações: 1) de início, encontram-se os grupos criminosos que surgem no seio da sociedade, os ajuntamentos, os bandos ou quadrilhas, aos quais sempre se atribuiu a natureza criminosa, segun- do teorias criminológicas tradicionais; 2) depois, encontram-se aqueles grupos criminosos que surgem no âmbito das relações econômicas, no contexto de organizações formalmente constituídas e orientadas a uma criminalidade empresarial, apenas considerados pelas teorias crimino- lógicas mais tardiamente; 3) e por fim, apesar da grande hesitação do pensamento criminológico ainda atualmente, encontram-se os grupos criminosos constituídos no âmbito da atividade política, geralmente im- bricada com aquelas outras. Essas faces social, econômica e política, em suas inter-relações de poder, terão muito a dizer não apenas sobre a cri- minalidade, mas antes e sobretudo acerca do fenômeno do criptopoder que sub-repticiamente se exerce em toda as relações humanas e por vezes se desenvolve como fisiologia do poder oficial, chegando até os confins do poder jurídico que se exercem por tribunais, embora estes geralmente não sejam postos sob suspeita na teorização da criminalidade organiza- da, porque são o último garante de que há algum sentido em falar de “combate ao crime organizado” e de que o direito penal não entrará em colapso por autocontradição interna.
Há, ademais, uma dissociação diacrônica entre o fenômeno dos grupos criminosos e sua tipologia penal que nos oferece uma com- preensão relevante do crime organizado. Afinal, o que podemos atual- mente entender por “crime organizado” não é apenas um fenômeno da realidade que decorre exclusivamente da inovação do crime pelos sujeitos criminosos; antes e também, é uma inovação conceitual do cri- me pelos sujeitos penais; é uma construção teórica. Ele decorre de uma nova perspectiva de compreensão criminológica da criminalidade e de sua resposta político-criminal que se vai aglutinar em novas categorias de um direito penal, cuja tradição jurídico-científica liberal se vê aos poucos confrontada por uma crítica comunitarista renovada que adere a um programa político-metodológico internacionalista. Todas essas questões estão congregadas no que podemos chamar de paradigma sis- têmico que se encontra na base de todo esse edifício teórico. O “crime organizado” é, nesse sentido, de forma sintética, uma categoria gerencial da criminalidade segundo um paradigma sistêmico.
Não queremos com isso negar que o crime organizado exista como problema da realidade que nos atormenta seriamente a vida em comum. Ele existe e nos incomoda realmente a vida de forma incri- velmente dramática, quando consideramos suas inter-relações sociais, econômicas e políticas que produzem impactos sérios nas institui- ções de toda nova cultura2. É preciso que se mantenha essa consciên- cia sempre. Contudo, essa é apenas uma face da questão, cuja devida compreensão nos exige entender, tanto aqui quanto em qualquer ou- tra questão, que os objetos não são entidades independentes da mente, pois eles estão vinculados aos símbolos em geral e mais especificamen- te da linguagem humana3. O crime organizado, assim como todos os demais, exige-nos que antes o nomeemos, pela linguagem penal, para que se assuma como realidade jurídica, e assim o tem feio a ciência ju- rídico-penal por meio do tipo das organizações criminosas. Mas este, que é o ponto de chegada e solução institucional para o problema, constitui para a razão crítico-jurídica, que não se basta com soluções absolutas e definitivas, apenas o ponto de partida de novos questiona- mentos e considerações4. É essa perspectiva que sugerimos adotar na
A respeito, cfr. a impressionante interpretação que nos apresenta Castells, M. O fim do milênio. São Paulo, Paz&Terra, 2009, pp. 239-244.
Cfr. Chomsky, N. Que tipo de criaturas somos nós? Petrópolis, Vozes, 2018, p. 171.
Cfr. Albert, H. O direito à luz do racionalismo crítico. Brasília, UnB, 2013.
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discussão teórica dessa nova tecnologia penal que se confronta com a tradição jurídico-científica liberal, fazendo emergir as razões diversas (éticas e políticas, epistemológicas e metodológicas) que se encontram subjacentes ao direito penal das organizações criminosas. Ao conjunto dessas razões podemos chamar de racionalidade penal do século XXI.
Essas razões podem ser aglutinadas e pensadas segundo diver- sas perspectivas. Podemos dizer que o direito penal das organizações criminosas pressupõe uma criminologia e uma política criminal que o alimentam com fatos colhidos cientificamente e valores ponderados politicamente, mas essa redução nos sonegaria muitas questões im- portantes, porque essa lógica de relação entre os diversos aspectos da ciência penal se encontra em qualquer outro tipo de crime. O mais importante – para permitir entender a novidade que emerge dessa ca- tegoria conceitual – está em tentar compreender os programas políti- co-metodológicos e as tradições técnico-jurídicas pressupostas em um elemento fundamental que os aglutina: o paradigma. É a partir e com base na noção de paradigma que podemos avançar no entendimento do conceito de crime organizado como categoria gerencial do sistema penal, que se encontra no coração das ciências penais do século XXI, permitindo aglutinar uma diversidade de perspectiva teóricas (jurídi- ca, sociológica, política e econômica) que atualmente encontramos a respeito do crime organizado.
O pensamento penal tem passado por mudanças profundas que ainda talvez não se tenham tornado claras aos juristas formados no positivismo clássico. O anúncio vem sendo feito há algum tempo, falando-se em expansão do direito penal5, bem como de grandes trans- formações do direito penal tradicional6, mas não há uma ênfase mais detida no lugar que ocupa o crime organizado nessa nova racionalida- de penal. A hipótese deste artigo é que o direito penal das organizações criminosas, com seus pressupostos criminológicos e suas orientações político-criminais, constitui-se com base em um novo paradigma da ciência penal no século XXI, nos termos que Thomas Kuhn fala da estrutura das revoluções científicas.
Silva-Sanchez, J. M. A expansão do direito penal, São Paulo, RT, 2002
Yacobucci, G. As grandes transformações do direito penal. São Paulo, RT, 2005.
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As evidências mais imediatas que nos aparecem se encontram nos exemplares históricos positivados pelo direito internacional, re- gional e nacional. A mais fundamental de todas é a Convenção das Nações Unidades contra o Crime Organizado Transnacional (CNU- COT, 2000), que quando foi promulgada em 2004 (Decreto n. 5.015, de 12 de março), no Brasil já existia a Lei n. 9.034/1994, substituída depois pela Lei 12.850/2013. A nível regional, encontra-se, ainda, a Resolução do Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos – CP/RES. 908 (1567/06) –, contendo Plano de Ação Hemisférico contra a criminalidade organizada transnacional, bem como a Decisão-Quadro 2008/841/JAI do Conselho da União Euro- peia relativa à luta contra a criminalidade organizada. Os exemplares positivos se multiplicam nos diversos Estados-nação, embora venha se tornado evidente que se trata de um paradigma mais amplo que está além das soberanias nacionais. Por isso, o objetivo teórico acerca da criminalidade organizada não deveria ser a mera analisar dos diversos instrumentos jurídico-legais – embora possamos ter sempre em mente alguma legislação –, mas identificar os elementos socioculturais que se encontram na base da racionalidade penal que se constitui em torno do crime organizado.
O principal elemento sociocultural se encontra na noção de paradigma, tal como nos apresenta Thomas Kuhn, especialmente em Posfácio de 1969, no qual tenta tornar mais claro esse conceito amplo que teria suscitado dúvidas na edição original de sua obra fundamen- tal7. É com base nessa noção, cuja assimilação pelo direito penal vamos explicar melhor, que podemos falar de racionalidade penal no século
XXI. Mas há outros elementos relevantes que interagem com a noção de racionalidade, permitindo inclusive entender suas consequências em níveis programático e prático. São igualmente relevantes, nesse sentido, a noção de programa metodológico8 e de tradição de pesquisa9. Não há razão, portanto, para substituírem-se as noções de paradigma e de programa pela noção de tradição, como o postula Larry Laudan, tampouco qualquer exclusão em favor de uma ou outra noção. Se op-
Kuhn, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 2009, p. 219.
Lakatos, I. Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação Científica. Lisboa, Edições70, 1999, p. 54.
Laudan, L. O progresso e seus problemas. Rumo a uma teoria do crescimento científico. São Paulo, Edusp, 2011, p. 111
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tamos pela noção de paradigma como diretriz é apenas porque ela nos parece ser a mais abstrata e geral, capaz de abarcar em sua discussão as noções de programa e tradição, como o próprio Thomas Kuhn o ad- mite em seu discurso. Assim, parece-nos claro que os três conceitos são igualmente relevantes à história de qualquer domínio de pensamento porque se complementam e nos permitem entender os problemas em dimensões variadas. Eles três constituem as bases epistemológicas do que vamos abordar, embora a noção de paradigma seja preliminar e mais fundamental, abrangendo as outras duas na devida compreensão O conjunto delas pode ser compreendido segundo o que George F. Kneller chama de antecedentes socioculturais de uma ciência qual- quer10, que podemos identificar e compreender igualmente no âmbito do que se convencionou chamar de ciência (conjunta do direito) penal, como síntese de saberes jurídico, político-criminal e criminológico11. Mas podemos igualmente chamá-lo apenas de racionalidade penal.
A ciência penal, como qualquer outra ciência, se pode enten- der como uma atividade humana que visa à solução de certos proble- mas (criminais) identificados por uma comunidade científica (jurídi- ca, político-criminal e criminológica), segundo certos antecedentes socioculturais que não se encontram manifestos nas leis penais, nos programas políticos ou nas teorias criminológicas, mas que se podem identificar com algum esforço mais abstrato de compreensão dos pres- supostos que orientam a descrição, valoração e normatividade jurídica do problema.
Assim como qualquer outra pessoa, também os homens de ciência são impelidos por emoções e outros condicionamentos, sobre- tudo quando tratam de problemas como o crime. Dessa forma, cer- tos fatores psicológicos da personalidade do cientista (conscientes e inconscientes) se transmitem à pesquisa científica, integrando-se nos antecedentes socioculturais. Admite-se, assim, que embora a Ciência
Kneller, G. F. A ciência como atividade humana. São Paulo, Zahar, 1980, p. 205.
Figueiredo Dias, J. Direito penal. Parte geral. Tomo I. Questões fundamentais. A doutrina geral do crime. 2a ed. Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 18ss.
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seja mais raramente determinada por fatores externos, “ela é frequen- temente influenciada por numerosos fatores que agem na cultura e sociedade de seu tempo, sobre os quais, por vezes, exerce alguma in- fluência”12. Entre os antecedentes socioculturais, encontram-se não apenas “tradições científicas nacionais”, mas também “visões do mun- do e ideologias”, filosofias e religiões. Também a opinião pública e o sistema educacional do país, a política e economia. Mas certamente o fator de influência mais diretamente acessível talvez seja a comunidade científica em que se insere o cientista. A comunidade científica “é uma associação de pessoas que não estão vinculadas entre si por leis nem ca- deias de comando, mas pela comunicação de informações – através de revistas especializadas, conferências, discussões informais e outros ca- nais”13. O funcionamento das comunidades científicas é em geral coor- denado por instituições, mediante certos mecanismos que asseguram o diálogo e buscam manter certos padrões de pesquisa, harmonizando interesses individuais dos cientistas com os compromissos coletivos da ciência. A ciência penal vem ainda incrementada por um conjunto de leis, disposições normativas várias e decisões judiciais que compõem a comunidade científica com ideias relativas ao crime. É nesse contexto que emerge o paradigma como elemento aglutinador de teorias, dou- trinas e ideologias que configuram a racionalidade penal.
Thomas S. Kuhn considera que a “natureza da ciência” se esta- belece por um conjunto de características que, embora não lhe sejam exclusivas e possam assemelhar-se aos de outros domínios do saber, no conjunto a distinguem como atividade científica. Entre estes ele- mentos, estão o paradigma e a comunidade científica: “Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham, inversamen- te, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma”14. Mas a noção de paradigma, com que Kuhn desenvolveu inicialmente sua teoria histórica acerca da estrutura das revoluções científicas, tinha mais de vinte sentidos, o que o levou a explicar-se melhor no posfácio (1969), restringindo o emprego do termo a dois sentidos – um mais global, no sentido de “matriz disciplinar”; e outro mais específico, no sentido de “exemplos compartilhados”. A expressão
Kneller, G. F. A ciência como atividade humana. São Paulo, Zahar, 1980, p. 204ss.
Kneller, G. F. A ciência como atividade humana. São Paulo, Zahar, 1980, p. 182ss.
Kuhn, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 2009, p. 221.
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matriz disciplinar remete a um conjunto de “elementos ordenados de várias espécies” (matriz) que são de “posse comum aos praticantes de uma disciplina particular” (disciplinar). Os elementos podem e costu- mam ser vários, mas Kuhn relaciona quatro considerados essenciais: generalizações simbólicas; partes metafísicas; valores e exemplares com- partilhados.
As generalizações simbólicas são expressões empregadas sem discussão pelos membros do grupo, a exemplo de certas fórmulas ma- temáticas em física. Na ciência penal, essas generalizações se encon- tram mais especificamente na lei penal, mas elas podem vir antes des- critas em formulações criminológicas que buscam identificar o objeto da ciência como seu problema, influenciando na forma de interpre- tação das generalizações, a exemplo do que sucedeu com a crimino- logia positivista, focada no homem delinquente, e agora sucede com a criminologia, focada nas organizações criminosas que alimentam o espírito hermenêutico das leis penais diante do fenômeno da crimina- lidade sempre que se encontram os elementos formais suficientes de subsunção. Assim, as generalizações que se encontram no tipo penal de um crime, como em qualquer outra ciência segundo o ressalta Kuhn, tende a ser empregada sem discussão por seus membros, o que tende a assumir um caráter problemático, por suas implicações em questões relativas ao objeto e ao método de qualquer teorização acerca das orga- nizações criminosas.
Os exemplares compartilhados estão em conexão imediata com essas generalizações, embora Kuhn trate deles em separado. Afinal, é com base em descrições concretas de certos problemas que o estudante de uma ciência específica assimila essas generalizações em sua forma- ção científica, antecipando certas soluções que indicam precisamente o trabalho que deve realizar. Assim, Kuhn observa que “na ausência de tais exemplares, as leis e teorias anteriormente apreendidas teriam pouco conteúdo empírico”15. A compreensão da lei penal por meio de exemplos é um expediente comum na formação do estudante de direi- to, sendo extremamente relevante observar o papel que exerce a refe- rência a crimes e criminosos específicos. E quanto ao estudo do crime organizado, é sintomática a recorrente referência ao protótipo mafioso
15 Kuhn, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 2009, p. 235.
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como exemplo máximo de crime organizado, embora cada vez mais a pesquisa especializada venha demonstrando o equívoco de reduzir toda criminalidade organizada a um modelo restrito.
As partes metafísicas representam um elemento fundamental do paradigma, pois concernem a compromissos coletivos, verdadeiras “crenças em determinados modelos” que auxiliam na solução de pro- blemas. É estranho admitir que uma ciência qualquer tenha em sua base subjacente uma metafísica, mas Gaston Bachelard já havia ressal- tado que “todo homem, no seu esforço de cultura científica, se apoia não em uma, mas sim em duas metafísicas” – o racionalismo e o rea- lismo16. Esses dois componentes metafísicos se encontram na ciência penal, sem grandes dificuldades, a considerar o pressuposto comum de que pela razão podemos conhecer a realidade, bem como pela pressu- posição do crime como uma realidade em si. É, contudo, contra esse realismo criminológico que as pesquisas acerca do crime organizado têm se insurgido, a demonstrar que não existe um crime organizado em si, mas apenas como construção social da realidade. Essa natureza de objeto construído é um dos principais elementos que caracterizam racionalidade penal no século XXI, segundo a noção de sistema como o descreveremos oportunamente.
Antes, contudo, é importante que se tenham em mente os va- lores do paradigma, geralmente mais compartilhados que os elementos anteriores, concernentes a critérios necessários para julgar teorias e sua utilidade social entre outras. A importância dos valores é que, como nos adverte Kuhn, eles “podem ser compartilhados por homens que divergem quanto à sua aplicação”17. Esse é um elemento de grande peso no paradigma, pois revela seu lado ético, além do epistêmico com que costuma ser reduzida a noção de paradigma. A respeito desses valo- res, contudo, será importante observar que a ciência penal do século XXI, embora se mantenha nos lindes da mesma defesa social que tem marcado o pensamento penal há muitos séculos, é possível observar-
-se uma certa modulação nos interesses sociais que começam a abrir-se mais ostensivamente ao econômico e ao político, sem deixar contudo de manter-se como defesa social. Aqui, mais do que uma mudança de
Bachelard, G. O novo espírito científico. Lisboa, Edições70, 2008, p. 7.
Kuhn, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 2009, p. 232.
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valores essenciais, observa-se uma mudança de valores ao nível do pro- grama metodológico com que a política criminal se estrutura, sendo relevante a uma melhor compreensão a noção de programa metodo- lógico de pesquisa, proposta por Imre Lakatos, que se deve compreen- der em sentido também político devido ao caráter multidisciplinar da ciência penal.
Imre Lakatos, opondo-se a uma visão ingênua do falseacio- nismo de Karl Popper, apresenta uma versão mais sofisticada, na qual substitui o conceito de teoria como elemento básico da lógica cien- tífica por uma série de teorias18. Essa observação é especialmente re- levante ao entendimento da ciência penal, a considerar sua natureza multidisciplinar, em que direito penal, criminologia e política criminal se apoiam e reforçam na construção social do crime organizado, legi- timando a resposta penal segundo o quadro de uma metodologia con- cebida para responder ao problema nos moldes que ela própria criou. Assim, “as teorias científicas não são só igualmente não comprováveis e improváveis como também irrefutáveis”, porque são concebidas em um ambiente controlado. Por isso, quando se constaram contradi- ções no âmbito prático da atividade de persecução penal, é impossível contestar-se o tipo penal, sendo necessário geralmente remeter ao âm- bito legislativo de discussão. Mas o que se ressalta, nessa forma mais complexa de considerar os enunciados científicos, é a necessidade de avaliar-se como científica não uma teoria isolada, mas uma sucessão de teorias, no âmbito do quadro de uma metodologia de programa de investigação.
O programa metodológico de investigação científica “é consti- tuído por regras metodológicas: algumas indicam-nos os caminhos da investigação a evitar (heurística negativa), outras os caminhos a seguir (heurística positiva)”19. Trata-se de “uma estrutura que fornece orien- tação para a pesquisa futura”20. Os programas de pesquisa se podem, assim, caracterizar pela existência de um “núcleo firme”, em torno do qual se forma uma “cintura protetora”. A ideia de uma heurística ne- gativa, assim, impede que certas refutações alcancem o núcleo firme.
Lakatos, I. Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação Científica. Lisboa, Edições70, 1999, p. 23ss.
Lakatos, I. Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação Científica. Lisboa, Edições70, 1999, p. 54.
Chalmers, A. F. O que é ciência afinal? São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 112.
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A heurística positiva, por sua vez, é mais flexível que a negativa, mas tende a desenvolver-se apenas no âmbito do permitido, indicando o tipo de coisa que o pesquisador pode fazer. Diz-se, portanto, que “a heurística negativa especifica o «núcleo firme» do programa que é irrefutável pelas decisões metodológicas dos seus proponentes”, ao pas- so que “a heurística positiva consiste num conjunto parcialmente arti- culado de sugestões ou conselhos sobre como modificar, desenvolver, as «variantes refutáveis» do programa de investigação”21. Isso requer adição de hipóteses auxiliares e o desenvolvimento de técnicas adequa- das, e nesse ponto, a noção de tradição de pesquisa será esclarecedora, como o veremos. Mas como isso se passa no campo da ciência penal, e mais especificamente quanto ao crime organizado que nos interessa? Aqui, convém entender o programa em sua expressão normativa, se- gundo uma política metodológica, tendo em conta os parâmetros de ação com que o poder penal fica autorizado a enfrentar a criminalidade de forma legítima.
Imre Lakatos observa que, em virtude da heurística negati- va, todos os programas de pesquisa podem ser caracterizados por um “núcleo firme”, que impede a metodologia de orientar-se em certos sentidos que se encontram excluídos da pesquisa22. Assim, o desenvol- vimento de heurísticas positivas acaba formando uma espécie de “cin- turão protetor” desse núcleo. Tendo esses conceitos em consideração, pensemos no processo penal comum, com base no núcleo firme dos direitos fundamentais, garantido pela proteção constitucional como cinturão protetor. Esse é o programa político-metodológico do consti- tucionalismo democrático dos Estados-nação que podermos observar nos crimes em geral. Mas esse programa político-metodológico tende a alterar-se com as diretrizes dos tratados internacionais, a exemplo do artigo 20 que fala de “técnicas especiais de investigação”, a suscitar de imediato a possibilidade de uma nova heurística positiva que pode al- terar por sua vez o núcleo firme dos direitos fundamentais. O que está em questão, em síntese, é a emergência de uma concepção de sociedade do risco global, com demandas por tutela de novos direitos e defesa social contra a criminalidade organizada e o terrorismo, tudo tendente a uma maior ampliação do poder punitivo, agora em perspectiva inter-
Lakatos, I. Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação Científica. Lisboa, Edições70, 1999, p. 58.
Lakatos, I. Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação Científica. Lisboa, Edições70, 1999, p. 55ss.
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nacional. Assim, embora o referido artigo 20 faça uma ressalva impor- tante – ao dizer “se os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico nacional o permitirem...” –, observa-se o fenômeno de tensão entre Constituição jurídica (Hesse) e Constituição real (Lassale), que não se tem resolvido com base na ideia de força normativa da Consti- tuição, afinal, diversamente do que sugeria Konrad Hesse, o “condicio- namento recíproco entre a Constituição jurídica e a realidade políti- co-social” nem sempre recusa “uma ordem legitimada pelos fatos”23. E aqui tem especial relevância as considerações que Larry Laudan faz a respeito das tradições de pesquisa como conceito mais radical de com- preensão de um domínio de pensamento como o que nos interessa re- lativamente aos problemas da criminalidade organizada.
Larry Laudan aceita as noções de programa (Lakatos) e para- digma (Kuhn) como ferramentas da compreensão do conhecimento científico, mas sustenta que a discussão deveria girar em torno da no- ção de “tradições de pesquisa” 24. Ele também admite que essa noção é comum a qualquer disciplina, científica ou não, pois todas têm uma história repleta de tradições. As tradições têm em comum os seguin- tes traços: a) toda tradição tem um certo número de teorias especí- ficas que a exemplificam e a constituem; b) toda tradição evidencia determinados compromissos tanto metafísicos como metodológicos;
c) cada tradição decorre de um número de formulações diferentes, se- gundo uma história. Sobretudo, uma “tradição proporciona um con- junto de diretrizes para o desenvolvimento das teorias específicas”. Par- te dessas diretrizes constitui uma verdadeira ontologia que especifica o tipo de entidades fundamentais no domínio da pesquisa, e de forma mais específica, determina ainda os modos de proceder que são “mé- todos de indagação”. Uma tradição de pesquisa é, assim, “um conjunto de suposições acerca das entidades e dos processos de uma área de es- tudos e dos métodos adequados a serem utilizados para investigar os problemas e construir as teorias dessa área do saber”. Uma tradição de pesquisa é, portanto, um “sistema de crenças” dividido em duas partes, uma acerca do tipo de entidade que constitui o domínio de pesquisa, outra acerca de normas epistêmicas e metodológicas com que a pes- quisa se desenvolve. Em suma, diz-nos Larry Laudan, “uma tradição de
Hesse, K. A força normativa da constituição. Porto Alegre, Safe, 1991, p. 19ss.
Laudan, L. O progresso e seus problemas. Rumo a uma teoria do crescimento científico. São Paulo, Edusp, 2011, pp. 111-117.
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pesquisa é, então, um conjunto de afirmações e negações ontológicas e metodológicas”, nas quais podemos supor tanto a noção de programa (Lakatos), quanto a de paradigma (Kuhn). As tradições de pesquisa, nesse sentido, não são explicativas, nem preditivas, nem diretamente corroboradas. O que lhes interessa é terem êxito relativamente à so- lução adequada de um âmbito de problemas. Em outras palavras, na perspectiva da noção de tradição de pesquisa, o que interessa são os problemas e sua solução. E isso nos confere uma noção satisfatória para compreensão da criminalidade organizada como problema que se co- loca ao conjunto de saberes da ciência penal.
O conceito de tradições de pesquisa pressupõe que “a ciência é essencialmente uma atividade de solução de problemas”25, o que é uma concepção propícia a entender melhor a ciência penal do século XXI, bem como sua racionalidade. Laudan desenvolve sua concepção de ciência a partir de duas teses fundamentais. Conforme a Tese 1, a pro- va essencial de uma teoria é saber se proporciona soluções satisfatórias a problemas importantes; conforme a Tese 2, para valorar o mérito de uma teoria, é mais importante perguntar se constituem soluções ade- quadas a problemas que perguntar se são verdadeiras, se são corrobora- das ou são justificadas de qualquer modo. Os problemas são, assim, o ponto inicialmente central e constituem perguntas, das quais as teorias são as respostas do pensamento científico como seu resultado final. O propósito da ciência, portanto, consiste em “obter teorias com uma ele- vada efetividade na resolução de problemas”. Essa perspectiva científica começa a nos dar uma boa compreensão da ciência penal do século XXI como resposta ao crime organizado segundo uma visão gerencial do problema da criminalidade. Mas é preciso ter em conta uma melhor compreensão do problema para não cairmos no realismo ingênuo, pois o problema não é o crime organizado em si, como problema prático, mas como o crime passa a ser considerado como problema teórico em sua concepção.
Afinal, os problemas podem ser empíricos ou conceituais26. Os problemas empíricos são problemas essencialmente práticos, que con-
Laudan, L. O progresso e seus problemas. Rumo a uma teoria do crescimento científico. São Paulo, Edusp, 2011, pp. 18-21.
Laudan, L. O progresso e seus problemas. Rumo a uma teoria do crescimento científico. São Paulo, Edusp, 2011, p. 13.
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cernem àquilo com que as instituições estatais lidam diariamente no en- frentamento da criminalidade, cujas soluções dependem de certos parâ- metros teóricos que se tornam problemas de segunda ordem, pois dizem respeito às condições sob as quais um problema se considera resolvido. Os fatos qualificados como crime são, portanto, problemas empíricos que se resolvem segundo certos conceitos que se colocam pelas ciências penais; e caracterizá-los como crime organizado consiste precisamente no tipo de problema conceitual de segunda ordem que constitui a ino- vação da ciência penal do século XXI. Assim, não importa tanto saber se existe um crime organizado como dado da realidade, mas sim como construção sociocultural que decorre de alguns pressupostos teóricos re- lativos ao modo como vemos a realidade: a nossa racionalidade. E isso depende essencialmente do paradigma com que a ciência penal se rees- trutura. Assim, embora possamos falar de tradições e programas, falar de paradigma consiste no ponto fundamental de partida para compreender tudo que se lhe segue como racionalidade penal.
Ao falar de paradigma, não o podemos reduzir a uma questão epistemológica, sem qualquer implicação axiológica, afinal, desde sem- pre, “o problema da liberdade entrelaça-se intimamente com o proble- ma do conhecimento”27. Ademais, a face axiológica se desdobra em perspectivas política e ética, ao passo que a face epistêmica se desdobra em perspectivas metódicas e técnicas, repercutindo tanto no progra- ma quanto na tradição de que falamos. Não nos podemos desvenci- lhar das grandes questões atuais da sociedade atual, tampouco enten- der profundamente o direito penal das organizações criminosas, sem que levemos a sério essas relações, supondo uma qualquer objetividade epistemológica sem qualquer relação com os pressupostos axiológicos, a menos que se queira permanecer na superfície do direito, sem consi- derar o mundo da vida subjacente à positividade formal das leis. Mas sequer essa vida nos é imediatamente perceptível sem uma intermedia- ção simbólica do pensamento. E é isso que se apresenta pela ciência de nosso tempo.
27 Cassirer, E. Indivíduo e Cosmos na filosofia do renascimento. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
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A vida, natural ou sociologicamente considerada, é-nos apre- sentada como que imersa em uma “nova ecologia”, cujas teias de co- nexão nos têm exigido pensar de forma sistêmica para compreender a complexidade do mundo em que vivemos. Fala-se de uma “ecologia profunda”, orientada a superar os paradigmas atuais da sociedade, por- que “quanto mais estudamos os principais problemas de nossa época, mais somos levados a perceber que eles não podem ser entendidos iso- ladamente. São problemas sistêmicos, o que significa dizer que estão interligados e são interdependentes”28. A criminalidade – entre outros tantos problemas – é apenas um dos que nos têm exigido um novo pa- radigma de pensamento. É com base nessa hipótese fundamental que se tem desenvolvido a teoria dos sistemas, cujas ideias mais gerais se en- contram bem estabelecidas na teoria de Ludwing von Bertalanffy. Mas a assimilação da “teoria geral dos sistemas” implica uma mudança na concepção tradicional de sistema jurídico que talvez não se tenha ain- da compreendido devidamente pela dogmática tradicional construída com base na ideia clássica de sistema. O pensamento sistêmico atual tem permeado vários campos das sociedades contemporâneas, em par- te decorrente dos problemas que se põem a essa nova sociedade, que vão desde questões de natureza industrial e militar, até questões emer- gentes de meio ambiente e poluição, bem como congestionamento de trânsito e criminalidade organizada. Mas não apenas essa criminalida- de. O fato de que o enfrentamento de todos os outros problemas pode exigir força pública, em última análise é o direito penal que se expande em todos os campos, vindo a exigir mais do processo penal do que se costumava29. É, por isso, importante compreender o quanto de espaço para novos totalitarismos exsurge dessa nova mentalidade30.
Não se trata, portanto, apenas de uma questão de avanço tec- nológico, mas sobretudo de “transformação nas categorias básicas do pensamento”. Implica, primeiramente, uma reorientação do pensa- mento que se observou em vários campos do conhecimento, incluindo as ciências sociais. Implica, ainda, compreender fatos históricos em
Capra, F. A teia da vida: Uma nova compreensão dos sistemas vivos. São Paulo, Cultrix, 2006. Atribui- se a Aldo Leopold (1949) a ideia de uma Ecologia Profunda, defendida em um ensaio publicado pós-morte: “The land ethic simply enlarges the boundaries of the community to include soils, waters, plants, and animals, or collectively: the land”.
Silva Sánchez, J.-M. A expansão do direito penal. Aspectos da política criminal nas sociedades pós- industriais. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002; Silva Sanchez, J.-M. Aproximação ao direito penal contemporâneo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 93ss.
Bertalanffy, L. von. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis, Vozes, 2008, p. 29ss: “os perigos desta nova criação infelizmente são evidentes e já foram muitas vezes enunciados”.
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escalas diversas, chegando a observações de maior alcance, exigindo-
-nos aceitar que somos resultados de “forças históricas” decorrentes de sistemas socioculturais. É nesse ponto que o novo paradigma mostra sua base historicista, cujos perigos autoritários foram muito bem ex- planados por Karl Popper, no livro A Pobreza do Historcisimo, dedi- cado à “memória dos inúmeros homens, mulheres e crianças, de todos os credos, ou nações, ou raças, que foram vítimas da crença fascista e comunista nas Leis Inexoráveis do Destino Histórico”31. É necessário, portanto, compreenderem-se as ideias fundamentais desse pensamen- to sistêmico.
Uma ideia fundamental da teoria dos sistemas é a tendência a não isolar fenômenos em contextos confinados, mas a buscar com- preendê-los em interações cada vez maiores, em sistemas cada vez mais amplos, tanto no tempo quanto no espaço. Essa é precisamente a ideia fundamental de base com que se reconstrói toda a ciência penal orien- tada pela racionalidade do crime organizado. O crime, cada conduta de lesão a bens jurídicos, ainda continua a ser um ato individual, ato- micamente considerando, mas o direito penal passou a considerá-lo como células, estruturas mais amplas no conceito geral de organização criminosa. Mas uma consequência que resulta imediatamente disto é a priorização de coletividades em detrimento de individualidades, o que para o campo do direito tende a consequências ostensivamente autoritárias, baseadas em ideias de defesa da sociedade que cada vez mais se multiplicam para além de alguns interesses clássicos limitados à incolumidade pública, afinal cada vez mais os interesses sociais se expandem nos campos econômico e político, em detrimento do in- divíduo. Bertalanffy havia mesmo admitido que, no contexto de uma teoria geral dos sistemas, “o homem torna-se substituível e consumí- vel”, podendo chegar à situação em que “o indivíduo se torna cada vez mais uma roda dentada dominada por uns poucos líderes privilegia- dos, mediocridades e mistificadores que só têm em vista seus interesses privados sob a cortina de fumaça das ideologias”32. Este é, portanto, precisamente o problema que se põe às ciências penais relativamente às ideias de uma teoria geral dos sistemas aplicada ao direito penal, não se podendo perder de vista a distinção entre o domínio de descrição da
Popper, K. A pobreza do historicismo. Lisboa, Esfera do Caos, 2007.
Bertalanffy, L. von. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis, Vozes, 2008, p. 29.
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realidade e o domínio de sua valoração política e ética. Assim, diante da tendência do pensamento sistêmico para considerar similares sis- temas tão diversos (orgânicos e sociais), devemos reter a advertência de que “os valores reais da humanidade não são aqueles que ela tem de comum com as entidades biológicas, a função de um organismo ou de uma comunidade de animais, mas os que derivam do espírito hu- mano”33. Afinal, como o reconhece Bertalanffy, o campo das ciências do homem é marcado pela existência de um universo simbólico que representa o mundo da cultura.
É, portanto, necessário compreender as implicações diversas do novo paradigma sistêmico com que se têm desenvolvido as ciências penais no século XXI, afinal não se trata apenas de uma questão de conhecimento objetivo da realidade que busca legitimidade no discur- so científico. Com esse novo paradigma podemos chegar não apenas a uma melhor compreensão da realidade, mas também extrair mui- tas implicações ético-políticas. É isto que nos importa compreender essencialmente. Um novo paradigma que pretende nos oferecer uma nova descrição da realidade traz consigo elementos teóricos que nos habilitam a agir no campo prático em um sentido diverso. Fritjof Ca- pra, tendo em conta esse paradigma, considera que podemos encon- trar soluções até muito simples para os principais problemas de nosso tempo, mas isto requer “uma mudança radical em nossas percepções, no nosso pensamento e nos nossos valores”. Em outras palavras, requer uma mudança de nossa racionalidade. É importante entendermos o que tudo isto significa para o direito penal. Mas apenas entendendo o paradigma que estamos deixando para trás – o paradigma que vem sofrendo retrações e está em vias de ser superado em vários campos, especialmente no jurídico-penal –, é que podemos entender em que sentido a mudança está a operar-se.
Norberto Bobbio compreendeu bem este paradigma ao des- crevê-lo como a era dos direitos, expliando a organização social a partir e por meio dos direitos humanos individuais34. Ele se constitui de vá- rios elementos histórico-positivos, axiológicos e metafísicos represen- tados por declarações universais de direitos e tratados internacionais,
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valores iluministas e liberais, doutrinas do contrato social, estado da natureza e direito natural35. Nós o podemos chamar de “humanismo jurídico” em oposição a esse “ecologismo holístico” que o confronta. Alain Renault expressa essa concepção em outros termos, ao dizer que “o humanismo jurídico dos Modernos, aplicando ao direito a convic- ção de que o homem é o princípio de toda a normatização, tomará como pressuposto que o homem é o autor de seu direito e que esse direito se afirma unicamente por ser fundado sobre o acordo «contra- tual» das partes interessadas”36. “O homem como medida” das coisas do direito é, assim, o postulado fundamental do humanismo jurídico, conquanto muitas concepções sobre o homem se possam encontrar. É, portanto, essa medida de valor que começa a perder a centralidade do pensamento humano, a alterar a nossa racionalidade sobretudo no âmbito penal. É aqui que se encontra, no campo de nosso interesse, o ponto de mutação – termo referido por Fritjof Capra para explicar a mudança de paradigma que temos vivido37.
Ao final de nossa tentativa de explicar o que chamamos de paradigma sistêmico, pode-se objetar que esse novo paradigma não propugna diretamente a desconstrução dos direitos humanos, pois apenas exige que pensemos os problemas com “soluções sustentáveis”, que considere as necessidades atuais, sem descuidar das perspectivas de gerações futuras. Conhecemos bem esse conceito no campo do meio ambiente natural38, mas se o estendermos a outros problemas não ape- nas naturais, como também sociais – a exemplo do que temos chama- do de “criminalidade organizada” –, considerados sobre a perspectiva de uma ecologia profunda, teremos de fato uma revolução. É necessá- rio, contudo, atentar para os elementos anti-humanistas que permeiam essa ecologia profunda, propugnando por um direito natural extra-hu-
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Trata-se de um conceito adotado pelas Nações Unidas (1983), com base no relatório da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, “Nosso Futuro Comum”, conhecido como Relatório Brundtland: “O desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que encontra as necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades”.
mano que confronta muito diretamente com o humanismo jurídico moderno39.
Essa viragem é operada por um pensamento sistêmico, pelo qual se deixa de pensar os problemas sociais segundo um individua- lismo, para falar em sistema mais amplos de problemas que interessam às comunidades. É o renascer do comunitarismo com seus valores que integram a face ético-política do paradigma sistêmico. É esse paradig- ma, em sua dupla perspectiva epistêmica a axiológica, que se encontra subjacente nas ciências penais do nosso tempo, aglutinado no que po- demos chamar de direito penal das organizações criminosas.
Biografia do Autor:
Eliomar da Silva Pereira
Doutor em Direito (Universidade Católica Portuguesa – Escola de Lisboa); Investigador Integrado do Ratio Legis (Centro de I&D em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa);
Pesquisador no Observatório de Criminalidade Organizada (Grupo de Pesquisa da Escola Superior de Polícia);
Professor do Programa de Pós-Graduação da Escola Superior de Polícia; Delegado
de Polícia Federal
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INfORmAçõEs AdICIONAIs E dECLARAçõEs dOs AuTOREs (integridade científica) Declaração de conflito de interesse: O(s) autor(es) confirma(m) não haver conflitos de interesse na condução desta pesquisa e na redação deste artigo. Declaração de autoria: Todos e apenas os pesquisadores que atendem os requisitos de autoria deste artigo são listados como autores; todos os coautores são integralmente responsáveis por este trabalho em sua totalidade. Declaração de originalidade: O(s) autor(es) assegura(m) que o texto aqui publicado não foi previamente divulgado em qualquer outro local e que a futura republicação apenas será feita com expressa referência desta publicação original; também atesta(m) que não há plágio de material de terceiros ou autoplágio. |
COmO CITAR (ABNT BRAsIL) |
PEREIRA, Eliomar da Silva. A teorização da criminalidade organizada: contributos para uma discussão científica. Revista Brasileira de Ciências Policiais, Brasília, v. 13, n. 8, p. 359-381, mar. 2022. https://doi.org.br/10.31412/rbcp.v13i8.940 |
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